Gil Sant'Anna Jr.
Artigo 6 de 6

A Máquina e o Espelho

Pessoas Negras no Setor Público Brasileiro

"Eu me tornei servidor pra servir, mas também pra resistir."

Essa frase, dita por um entrevistado de carreira sólida em uma secretaria estadual, resume bem a tensão que atravessa a trajetória de pessoas negras no setor público: ao mesmo tempo espaço de estabilidade e espaço de contenção, a máquina pública pode ser trampolim ou muro. Este artigo investiga como pessoas negras navegam, sobrevivem e, às vezes, transformam essa máquina.

Entre estabilidade e invisibilidade

Historicamente, o setor público representou uma das primeiras possibilidades reais de mobilidade social para pessoas negras no Brasil. O ingresso via concurso - teórica e formalmente neutro - permitiu que profissionais negras e negros ocupassem funções estáveis e, em muitos casos, alcançassem salários e garantias que o setor privado ainda nega sistematicamente.

Mas ao investigar mais de perto os dados e relatos, percebe-se que essa estabilidade é atravessada por uma contradição: a permanência não garante visibilidade nem ascensão. Como relatou uma servidora federal com mais de 15 anos de carreira: "Você entra pela porta da frente, pelo concurso, mas depois fica preso no subsolo."

Os dados confirmam essa percepção. Segundo levantamento do IPEA de 2020, pessoas negras representam cerca de 35% do funcionalismo público federal, mas ocupam apenas 18% dos cargos de direção e assessoramento superiores (DAS) de níveis 5 e 6, os mais altos na hierarquia. A disparidade é ainda maior em áreas como diplomacia, magistratura e carreiras jurídicas.

A máquina tem rosto: barreiras simbólicas e estruturais

"A máquina pública não é neutra, ela tem rosto, tem sotaque, tem códigos", afirma um procurador federal negro entrevistado para esta pesquisa. Essa observação revela como o aparato estatal, supostamente impessoal, é permeado por marcadores sociais que definem quem pertence e quem não pertence aos espaços de poder.

As barreiras enfrentadas por pessoas negras no setor público são tanto estruturais quanto simbólicas:

  • Redes de influência: O acesso a cargos comissionados e posições estratégicas frequentemente depende de redes de contatos e indicações que historicamente excluem pessoas negras.
  • Códigos não escritos: Expectativas implícitas sobre vestimenta, linguagem, referências culturais e comportamento que privilegiam padrões eurocêntricos.
  • Isolamento: A sub-representação cria ambientes onde servidores negros são frequentemente os únicos ou um dos poucos em suas equipes, gerando sobrecarga emocional e pressão por "representatividade".
  • Deslegitimação técnica: Questionamento constante da capacidade técnica e intelectual, exigindo que servidores negros provem repetidamente sua competência.

O poder que não se vê: apagamentos e performances

Uma característica marcante do racismo institucional no setor público é sua invisibilidade formal. Como explica uma analista de políticas públicas: "Ninguém vai te dizer 'você não foi promovida porque é negra'. O racismo está na ausência, no silêncio, no que não é dito nem feito."

Essa dinâmica produz um fenômeno que chamamos de "dupla performance": pessoas negras precisam simultaneamente performar excelência técnica (frequentemente acima da média exigida de colegas brancos) e neutralizar/minimizar marcadores raciais que possam gerar desconforto ou estranhamento.

Como relatou um servidor municipal: "Você aprende a modular sua voz, seu corpo, suas opiniões. Aprende quando pode ser você mesmo e quando precisa ser o 'servidor modelo' que não incomoda ninguém."

As máscaras por estágio

Nossa pesquisa identificou diferentes "máscaras" ou estratégias de sobrevivência adotadas por servidores negros ao longo de suas trajetórias, que variam conforme o estágio da carreira:

1. Estágio inicial: A máscara da gratidão

No início da carreira, muitos servidores negros adotam uma postura de extrema gratidão e conformidade, evitando qualquer comportamento que possa ser interpretado como confrontacional. "Você fica tão feliz por ter conseguido entrar que aceita qualquer coisa", relata uma servidora estadual.

2. Estágio intermediário: A máscara da competência

Com alguns anos de experiência, desenvolve-se a estratégia de blindagem pela excelência técnica. "Você precisa ser duas vezes melhor, conhecer os procedimentos melhor que todo mundo, dominar cada detalhe da legislação", explica um auditor fiscal.

3. Estágio avançado: A máscara da negociação

Servidores com mais tempo de carreira frequentemente desenvolvem habilidades sofisticadas de negociação e articulação, aprendendo a navegar os códigos institucionais sem perder completamente sua identidade. "Você aprende quando pode falar sobre racismo e quando precisa traduzir para uma linguagem que a instituição entenda", relata uma gestora federal.

4. Estágio de ruptura: A máscara que cai

Em alguns casos, após anos ou décadas de carreira, ocorre um momento de ruptura em que servidores negros decidem abandonar as máscaras e confrontar abertamente as estruturas racistas. "Chega um ponto em que você não aguenta mais fingir que está tudo bem", conta um procurador com 25 anos de carreira.

Frestas: onde algo se move

Apesar das barreiras, identificamos importantes movimentos de transformação dentro da máquina pública, especialmente na última década:

  • Redes de apoio: Formação de coletivos e redes informais de servidores negros que compartilham experiências e estratégias de sobrevivência e avanço.
  • Ocupação estratégica: Servidores negros em posições-chave utilizando seu conhecimento técnico para influenciar políticas públicas e práticas institucionais.
  • Políticas de diversidade: Implementação gradual de programas de diversidade e inclusão em alguns órgãos públicos, incluindo cotas para cargos comissionados.
  • Formação de quadros: Iniciativas de preparação específica para concursos públicos voltadas para pessoas negras, ampliando o acesso às carreiras mais prestigiosas.

Como observa uma servidora que coordena um programa de diversidade: "A gente está abrindo frestas na estrutura. Não é uma revolução completa, mas são espaços que não existiam antes e que permitem que algo novo comece a crescer."

Conclusão: Entre técnica e transformação

A trajetória de pessoas negras no setor público brasileiro revela uma tensão permanente entre adaptação e transformação. Por um lado, a máquina pública exige conformidade a códigos e práticas estabelecidos; por outro, a presença negra nesses espaços carrega um potencial transformador.

Como sintetiza um dos entrevistados: "Nós somos ao mesmo tempo espelho e martelo. Espelho porque refletimos o que a instituição espera de nós para sobreviver nela. Martelo porque, mesmo assim, vamos quebrando pedaços dessa estrutura, mesmo que lentamente."

O desafio para o futuro é duplo: ampliar significativamente a presença negra em todos os níveis da administração pública e transformar a própria cultura institucional, para que a diversidade não seja apenas tolerada, mas valorizada como elemento essencial para a construção de políticas públicas verdadeiramente democráticas e inclusivas.

Este artigo é parte da série "Máscaras e Espelhos: Lideranças Negras no Brasil Contemporâneo", um projeto de pesquisa que investiga as estratégias de sobrevivência, resistência e transformação de pessoas negras em diferentes espaços de poder.