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A Genealogia das Barreiras
O que Permanece Estrutural Apesar das Estratégias Pessoais
"A gente aprende a se mover no tabuleiro, mas o tabuleiro nunca deixa de ser inclinado."
Essa frase dita com voz baixa e olhos firmes por uma participante em alta liderança sintetiza a tensão que atravessa este artigo. Se os estudos anteriores mapearam as máscaras e estratégias individuais utilizadas para se mover em contextos profissionais racializados, aqui o objetivo é olhar para o que não se move, para o que resiste - as barreiras estruturais que permanecem, mesmo diante do esforço extraordinário de indivíduos negros.
Não é sobre mérito, é sobre moldura
"A gente aprende a se mover no tabuleiro, mas o tabuleiro nunca deixa de ser inclinado."
Essa imagem, dita por uma mulher negra em cargo executivo, ecoa como um tambor grave no centro da discussão sobre meritocracia no Brasil. É tentador acreditar que basta esforço, qualificação e dedicação para vencer - mas a história brasileira insiste em lembrar que o jogo nunca foi igual. A ideia de mérito, quando aplicada a um país construído sobre séculos de escravidão, exclusão legal e discriminação institucionalizada, precisa ser revista com rigor e honestidade.
Nos séculos XIX e XX, diversas legislações proibiram explicitamente pessoas negras de frequentar cursos superiores, academias militares, ou exercer profissões intelectuais e técnicas no Brasil. Até 1930, era comum que editais de concursos públicos exigissem "boa aparência", um eufemismo racializado que restringia o acesso de negros a funções estratégicas. Como lembra o historiador Sidney Chalhoub, o racismo à brasileira não se estrutura somente por segregações formais, mas por mecanismos sutis e profundamente arraigados que barram a ascensão de pessoas negras mesmo após o fim das proibições legais.
Essa tradição de exclusão moldou o imaginário sobre quem pertence aos espaços de poder. Como bem aponta Lélia Gonzalez, o racismo brasileiro opera na linguagem e na estética, determinando não apenas quem pode falar, mas quem será escutado. A meritocracia, nesse cenário, se transforma numa moldura vazia: ela define o quadro apenas depois de escolher quem pode entrar nele.
Nossa pesquisa com mais de 1.100 lideranças negras e 98 entrevistas em profundidade revela que mesmo quando os critérios de desempenho são cumpridos à risca - títulos acadêmicos, fluência em línguas, resultados entregues, prêmios - o reconhecimento permanece desproporcional. Não é que a escada seja longa. É que, para alguns, os degraus se movem.
Como dizia o sociólogo Clóvis Moura, "a democracia racial no Brasil é uma ficção ideológica construída para manter os privilégios de poucos sob a aparência de inclusão". A moldura do mérito, portanto, serve mais para justificar a permanência das desigualdades do que para explicá-las. E é olhando para essa moldura que começamos a enxergar as verdadeiras barreiras que sustentam o sistema.
A ideia de que esforço individual, competência técnica e carisma bastam para garantir mobilidade profissional é um mito reiterado nos discursos empresariais contemporâneos. No entanto, como mostra nossa pesquisa com mais de 1. contemporâneos. No entanto, como mostra nossa pesquisa com mais de 1.100 lideranças negras e 98 entrevistas em profundidade, o mérito está sempre sendo filtrado por lentes enviesadas, muitas vezes inconscientes, que moldam quem é visto como pronto, confiável ou compatível com posições de decisão.
Mesmo quando pessoas negras cumprem todos os critérios formais de qualificação, elas frequentemente não são promovidas no mesmo ritmo que seus colegas brancos. Dados do Instituto Ethos (2022) mostram que apenas 4,7% das pessoas negras ocupam cargos executivos no Brasil, apesar de representarem mais de 56% da população. O abismo não está na capacidade, mas na forma como essa capacidade é percebida e reconhecida.
Barreiras que resistem ao desempenho
Nossa análise revela pelo menos quatro grandes barreiras estruturais que atravessam os diferentes setores e estágios da carreira - barreiras que não cedem, mesmo diante das estratégias mais bem calibradas. Elas não são obstáculos isolados, mas camadas persistentes de uma arquitetura social construída historicamente para manter as hierarquias onde estão.
1. A barreira da confiança institucional
Por mais competente que seja, o profissional negro costuma encontrar um teto invisível quando se trata de acesso a missões de visibilidade, orçamentos estratégicos ou fóruns decisórios. A confiança institucional, muitas vezes confundida com afinidade pessoal ou "sentimento de segurança", acaba sendo concedida com mais frequência àqueles que compartilham de códigos culturais, estéticos ou redes informais com quem decide.
"Meu gestor diz que confia em mim, mas quando chega o projeto estratégico, vai pra outro colega. Eu fico na operação."
É o que o antropólogo Michel Agier chamaria de "confiança seletiva": aquela que se sustenta mais na familiaridade que na evidência. Ela escapa à objetividade, perpetua subjetividades racializadas e cria zonas de contenção para talentos negros, mesmo em ambientes que se autoproclamam meritocráticos.
2. A barreira do patrocínio
Existe uma diferença fundamental entre ter um mentor e ter um patrocinador. O primeiro aconselha. O segundo aposta. Na nossa amostra, o patrocínio foi um fator raríssimo entre líderes negros em ascensão - o que coincide com achados internacionais como os do Center for Talent Innovation, que mostram que apenas 5% dos executivos negros nos EUA dizem ter patrocinadores influentes.
"Eu não tinha ninguém me puxando. Era sempre eu puxando a mim mesmo."
No Brasil, onde as decisões-chave são muitas vezes informais e atravessadas por lealdades pessoais, a ausência de patrocínio cria uma desigualdade silenciosa e poderosa. A pessoa negra pode até estar na sala, mas sem alguém que diga "ela pode", a porta para a próxima sala segue trancada.
3. A barreira do encaixe subjetivo
"Energia da equipe." "Perfil alinhado." "Cultura da empresa." São expressões que aparentam neutralidade, mas que frequentemente codificam exclusão. Quando se fala em "fit cultural", o que está sendo avaliado é muitas vezes o grau de semelhança - racial, estética, comportamental - com quem já ocupa o centro.
"Ouvi que eu era excelente, mas não combinava com a 'energia da diretoria'. Como se excelência tivesse estilo."
Judith Butler já apontava que normas de inteligibilidade definem quem pode ser visto como sujeito legítimo em um dado contexto. No mundo corporativo, essas normas não estão escritas, mas são reforçadas diariamente: nos happy hours, nas piadas, no silêncio sobre a ausência de pluralidade. Quem desafia o padrão, mesmo com desempenho, segue sendo percebido como exceção - e exceções, por definição, não viram regra.
4. A barreira da leitura política
A ascensão não depende apenas de desempenho técnico. Depende também da habilidade de navegar relações de poder, perceber alianças tácitas, saber quando falar - e, sobretudo, quando calar. Essa competência política raramente é ensinada formalmente. Ela circula em jantares, cochichos, cafés fora da agenda.
"Quando um colega branco é ambicioso, dizem que ele tem visão. Quando eu tento me posicionar, acham que estou forçando."
Essa assimetria não é acidental. Como mostra a socióloga francesa Danièle Linhart, os espaços organizacionais são menos meritocráticos do que narrativas gerenciais gostariam de admitir. A política institucional exige fluência em um idioma implícito - um idioma que, para muitos profissionais negros, nunca foi traduzido. E quando tentam aprendê-lo por observação, acabam punidos por desvio.
Cada uma dessas barreiras opera como parte de um sistema autorregenerativo de exclusão, que se adapta, se reinventa e se esconde sob as vestes da normalidade organizacional.
A estrutura resiste, mas não é estática
É importante reconhecer: as estruturas resistem, mas não são imunes a fissuras. Cada estratégia individual, cada rede construída, cada política institucional implantada com seriedade, contribui para empurrar os limites do possível. Mas só avançaremos se reconhecermos que essas estratégias não bastam sozinhas.
A genealogia das barreiras nos mostra que elas são persistentes porque foram institucionalizadas, normatizadas e refinadas ao longo do tempo - não por malícia individual, mas por lógicas de reprodução de poder. Derrubá-las exige mais do que boa vontade: exige ruptura com o conforto dos velhos critérios de seleção e valorização.
E quem está no jogo?
Este artigo é também um convite. Se você é um profissional negro e se reconhece neste texto, saiba que não está sozinho - e que a ausência de reconhecimento não é fracasso pessoal. É sistema.
Se você está em posição de tomada de decisão e ainda se pergunta por que tão poucos negros ascendem, talvez seja hora de mudar a pergunta: o que estou fazendo para remover as barreiras que a performance individual não dá conta de superar?
A genealogia das barreiras está diante de nós. Cabe agora decidir o que fazer com ela.
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