Gil Sant'Anna Jr.
Artigo 4 de 6

O que Rompe

Iniciativas, Redes e Políticas que Realmente Transformam

Nos últimos 40 anos, a diferença salarial entre pessoas negras e não negras no Brasil praticamente não se alterou. Como mostra Michael França em seu livro Números da Discriminação Racial, mesmo com avanços pontuais e políticas bem-intencionadas, a desigualdade estrutural se mantém firme: os rendimentos médios de negros e brancos seguem separados por um fosso persistente, reflexo direto da distribuição desigual de poder, oportunidades e reconhecimento.

Essa constatação nos obriga a olhar com honestidade para o que temos feito - e para o que não tem funcionado. Não basta celebrarmos a diversidade em discursos se, na prática, as posições de decisão continuam concentradas nas mesmas mãos. As estratégias individuais, por mais brilhantes e resilientes, não têm sido suficientes para transformar o sistema.

Este artigo nasce do desejo de compreender o que efetivamente tem o potencial de romper com esse ciclo. O que tem funcionado na prática? Quais políticas, redes e iniciativas não apenas produzem mobilidade individual, mas reconfiguram estruturas? E mais importante: o que precisamos apostar daqui pra frente se queremos construir um futuro onde a presença negra em espaços de poder seja regra, e não exceção?

O que funciona na prática

Em nossa pesquisa com mais de 1.100 líderes negros e 98 entrevistas em profundidade, identificamos padrões recorrentes nas histórias de sucesso - e não apenas no sentido individual, mas nos efeitos em cadeia. Quando uma pessoa negra rompe uma barreira, a porta não se abre só para ela. O que rompe, rompe coletivamente. A seguir, reunimos iniciativas, redes e políticas que apareceram com frequência como catalisadoras de mudança real.

Redes que fazem sentido em cada etapa da carreira

Nem toda rede é útil da mesma forma para todas as pessoas. Ao longo da análise, ficou evidente que diferentes tipos de apoio fazem mais ou menos sentido conforme o estágio da jornada profissional. O Ifá, nossa inteligência de carreira, inclusive oferece sugestões personalizadas baseadas nesse cruzamento.

🌱 Início de carreira: redes que oferecem acesso e inspiração

Lideranças como Mafoane Odara, com atuação consistente em temas de equidade racial e gênero, trilharam parte de sua trajetória inicial em redes de impacto como o Vetor Brasil e espaços de formação cidadã. Essas redes aparecem repetidamente como pontos de virada na construção da autoconfiança e do repertório político de jovens negros e negras.

No começo da trajetória, a maior barreira não é técnica: é simbólica. Trata-se de acreditar que é possível, encontrar referências que ressoem e acessar ambientes onde se aprende o jogo - mesmo que sem manual. Nesse sentido, redes como o Ensina Brasil, a Vetor Brasil, o FA.VELA, o UbuntuHub e o Global Shapers funcionam como catalisadores de pertencimento, visibilidade internacional e expansão de horizonte para jovens lideranças com aspiração de impacto.

Particularmente, tive a oportunidade de participar do Global Shapers, e posso dizer com clareza que foi um dos maiores divisores de águas na minha trajetória. Foi nesse espaço que entendi, com profundidade, o papel que posso exercer em uma escala global. Essa rede conecta jovens até 30 anos com pares de diversos países e setores, e seu diferencial está em oferecer repertório internacional, multiplicidade de perspectivas e conexão com fóruns globais - algo ainda inacessível para grande parte das lideranças negras brasileiras.

"Na rede, eu posso respirar. Posso falar sem me policiar. Isso muda tudo quando volto pro trabalho."

Essas redes cumprem um papel fundamental: oferecer familiaridade onde antes havia estranhamento. Elas não apenas abrem portas, mas legitimam quem entra por elas. Estratégica e psicologicamente, são âncoras que tornam o crescimento sustentável.

🧭 Desenvolvimento: redes que conectam e posicionam

O advogado e professor Thiago Amparo, por exemplo, integra a Rede de Líderes da Fundação Lemann, conectando sua atuação em direitos humanos a redes nacionais de formação e incidência estratégica. Sua trajetória demonstra como essa etapa exige mais do que acúmulo técnico - ela pede articulação, linguagem e posicionamento estratégico em diferentes círculos de poder.

Aqui, a pergunta muda: não é mais "como entro?", mas "quem sabe que eu existo?". No estágio intermediário da carreira, a visibilidade começa a importar tanto quanto a entrega. Redes como a Fundação Lemann - Rede de Líderes, AFRONTA, PerifaConnection e coletivos de nicho surgem como espaços onde vocabulário político, repertório estratégico e inteligência de cenário são trocados com intencionalidade.

"Foi num grupo de cientistas negros que encontrei meu primeiro co-orientador. Antes disso, eu nem cogitava tentar o doutorado."

Nesse momento, o mais estratégico é estar onde as conversas estratégicas estão acontecendo - mesmo que você ainda não tenha o crachá do cargo final. Estar nos bastidores é parte do acesso ao palco.

Nesta etapa, o desafio é sair do isolamento técnico e começar a navegar os bastidores das oportunidades.

🪜 Ascensão: redes que abrem portas e protegem

A executiva Nina Silva, fundadora do Movimento Black Money e considerada uma das mulheres negras mais influentes do Brasil pela Forbes, é um exemplo de liderança que soube ativar redes estratégicas nessa fase crítica. Sua atuação articula empreendedorismo, tecnologia e inclusão financeira, e passa por redes como a Rede de Executivos Negros e coletivos de inovação racial e digital.

A fase da ascensão é marcada por tensão. O talento é visível, mas a travessia para posições estratégicas exige códigos e apoios menos explícitos. Grupos como o Grupo +Líderes, a Rede de Executivos Negros, ou iniciativas intersetoriais como o Programa Sim à Igualdade Racial (ID_BR) se destacam como espaços que ensinam os códigos, sinalizam oportunidades e protegem reputações.

"Foi ali que aprendi o timing de me posicionar. Na minha empresa, ninguém ensinava isso."

🏛️ Alta liderança: redes que sustentam e desafiam

Executivos como Sérgio All, CEO da Conta Black, têm transitado por fóruns como o Conselho da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial e participado de encontros da YPO. Sua presença aponta para uma nova geração de líderes negros que não apenas ocupam espaços de poder, mas também tensionam suas regras e ampliam suas fronteiras.

No topo da hierarquia, o desafio é sustentar coerência e presença simbólica - e evitar o isolamento. Aqui, redes como a YPO (Young Presidents' Organization), Soho House, Conselho de CEOs da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial, Sistema B Brasil e CEOs Legacy aparecem como espaços onde a presença negra é ainda minorizada, mas com potencial de intervenção real.

Esses fóruns permitem não apenas articulação política, mas também recombinação de repertórios entre diferentes setores: arte, negócios, impacto social e política pública. A presença com agência transforma o lugar em plataforma - e não em vitrine.

"Ela chegou lá e não ficou quieta. Botou o dedo na ferida com elegância e abriu caminho pra gente entrar com mais força."

Políticas que não são cosméticas

As poucas iniciativas de patrocínio real (não apenas mentoria) que se mostraram efetivas tinham três elementos em comum: metas claras de promoção de lideranças negras, orçamento dedicado e prestação de contas pública. Programas internos de aceleração de carreira com foco racial, como os implementados por empresas como a BASF, Natura &Co e Ambev, foram citados por participantes como exemplos promissores - ainda que em estágio inicial.

"Eles me disseram desde o começo: nossa meta é que você esteja pronto pra assumir uma diretoria em dois anos. Não foi promessa, foi plano de ação com entrega."

Quando a inclusão deixa de ser narrativa e vira KPI estratégico, ela começa a reestruturar o que antes era apenas estético.

Apesar de avanços em algumas organizações, há uma tendência recente - especialmente pós-2020 - de retração no investimento em diversidade, equidade e inclusão (DEI). Um levantamento da empresa Revelio Labs, citado pela Bloomberg em 2023 , mostrou que após o pico de contratações de lideranças DEI nos Estados Unidos em 2020, houve uma queda de 33% nessas posições até 2023. Isso indica que, mesmo globalmente, os compromissos públicos nem sempre se sustentam diante de ciclos econômicos e mudanças políticas.

O Brasil segue tendência semelhante: estudos da GPTW e do Instituto Ethos mostram que a maior parte das empresas ainda concentra suas ações de diversidade em campanhas de comunicação, e menos de 20% têm metas de diversidade associadas a resultados de liderança. A ausência de mecanismos de monitoramento, incentivo financeiro e responsabilização real impede que a agenda saia do plano simbólico.

Comparações internacionais reforçam a urgência do tema. Segundo a McKinsey (2020) , empresas com maior diversidade racial e étnica em suas lideranças têm até 36% mais chance de superar a performance financeira da média do setor. No entanto, mesmo com essa evidência de retorno, a implementação concreta segue tímida e fragmentada.

O futuro da inclusão dependerá da nossa capacidade de institucionalizar compromissos - vinculando diversidade a orçamento, estratégia e accountability. Se a responsabilidade por transformar continuar sendo delegada apenas a grupos internos de afinidade ou a lideranças negras isoladas, a estrutura permanecerá inalterada. Para que as políticas deixem de ser cosméticas, precisam se enraizar em decisões orçamentárias, sistemas de incentivo e governança. Caso contrário, o que se verá será mais uma temporada de promessas bem intencionadas, seguida por uma silenciosa e previsível regressão.

Intervenções na base: escolas, bolsas e orientação de carreira

Nos últimos 22 anos, a proporção de pretos e pardos com ensino superior completo quintuplicou no Brasil - saltando de 2,2% em 2000 para 11,4% em 2022, segundo o Censo Demográfico divulgado pelo IBGE em fevereiro de 2025 . Ainda assim, esse índice segue sendo menos da metade do registrado entre brancos, que atingem 25,8%.

Esse avanço está diretamente ligado à implementação de políticas públicas como o ProUni e a Lei de Cotas (Lei nº 12.711/2012). Em 2018, pretos e pardos passaram a representar a maioria das matrículas em universidades federais, alcançando 50,3% dos ingressantes.

Estudos mostram que cotistas têm desempenho acadêmico equivalente ao de estudantes não cotistas, e que essas políticas resultam em ganhos concretos de mobilidade social, empregabilidade e renda.

Mas garantir o ingresso não basta. A permanência e o sucesso acadêmico exigem infraestrutura de apoio contínuo: bolsas, mentoria, acolhimento psicológico, e redes de suporte que reconheçam as especificidades do percurso negro. Organizações como a Educafro têm cumprido um papel central nesse ecossistema, com formação pré-vestibular gratuita e suporte comunitário para estudantes negros e de baixa renda. A Empodera atua conectando jovens negros a oportunidades no mercado de trabalho por meio de programas de capacitação e mentoria. A UNE (União Nacional dos Estudantes), historicamente, tem sido espaço de articulação política para a garantia de permanência estudantil, com protagonismo de lideranças negras.

Além dessas, iniciativas como o Instituto Identidades do Brasil, o Baobá Fund e programas de pré-aceleração têm atuado como mediadores potentes - fornecendo os recursos, o repertório e o suporte necessários para que o acesso não se transforme em evasão.

"Tive um orientador negro no ensino médio que me mostrou que eu podia chegar a qualquer lugar. Não foi só bolsa. Foi visão de futuro."

A trajetória não depende apenas da vaga conquistada, mas da qualidade das mediações ao longo do caminho. É isso que separa a inclusão real da inclusão simbólica.

A continuidade dessas políticas, no entanto, ainda é frágil. Muitos dos avanços podem ser revertidos com mudanças de governo, desfinanciamento ou discursos que tratam ações afirmativas como concessões e não como reparação histórica.

"Se eu estou aqui é por causa das cotas. E me assusta ver como isso ainda é tratado como favor e não como justiça."

Conclusão

As iniciativas que de fato rompem são aquelas que desafiam os alicerces do sistema, não apenas a sua estética. Elas não dependem da excepcionalidade de um indivíduo, mas se sustentam na criação de caminhos coletivos, redes de apoio, políticas com lastro e líderes com coragem.

Romper é um verbo coletivo. E quando praticado com seriedade, transforma não só o acesso - mas o próprio significado de poder.

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