Gil Sant'Anna Jr.
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Pessoas Negras no Terceiro Setor

Entre a Missão Social e os Desafios da Representatividade

O terceiro setor, historicamente identificado com justiça social e transformação, nem sempre é coerente com os próprios valores quando se trata de representatividade racial. Embora atue nas margens e reivindique mudanças estruturais, ele também espelha - em muitos momentos - as hierarquias e silêncios da sociedade brasileira. Pessoas negras são maioria nas bases operacionais das ONGs e institutos, mas ainda minoria nos cargos de liderança, formulação e influência.

Quando a missão social não garante espaço

Dados do Observatório do Terceiro Setor indicam que 46% das pessoas que atuam em ONGs e associações de defesa de direitos sociais são negras. Ainda assim, essa presença não se traduz proporcionalmente em lideranças. A ideia de que o terceiro setor seria automaticamente mais plural se desmancha quando se analisa o perfil racial de conselhos, diretorias e coordenações executivas. Muitos profissionais negros relatam exercer funções estratégicas sem o devido reconhecimento formal - e, em alguns casos, com remuneração inferior.

"Trabalho há mais de oito anos com políticas de equidade, mas só fui promovida quando tirei um mestrado fora. Antes disso, diziam que eu precisava me provar mais."

A moeda simbólica do prestígio acadêmico

Um dos achados mais relevantes da nossa pesquisa é o peso excepcionalmente alto que labels de prestígio - como ter estudado em universidades internacionais de renome - exercem sobre a trajetória de pessoas negras no terceiro setor. Ter cursado Harvard, Stanford, Columbia ou Oxford não apenas agrega reputação: muitas vezes, funciona como escudo contra o racismo institucional e chancela de legitimidade para acessar espaços que, de outro modo, seriam negados.

Programas como o Lemann Fellowship, o Fulbright e bolsas do Fundo Baobá e da Fundação Ford têm cumprido esse papel estratégico, facilitando o ingresso de lideranças negras em ecossistemas globais e redes de poder simbólico. No entanto, esse caminho ainda é acessado por poucos e pode gerar um outro tipo de tensão: a de ser visto como "exceção validada", e não como parte de uma transformação coletiva.

Desafios para quem chega lá

Aqueles que rompem o teto simbólico enfrentam outro obstáculo: a solidão institucional. Lideranças negras relatam pressão constante para representar toda uma pauta racial, mesmo quando sua posição ou função não está vinculada a esse tema. Essa sobrecarga simbólica gera exaustão e retira o direito à complexidade individual. Além disso, o ativismo racial é, muitas vezes, tolerado desde que suave, institucionalizado e alinhado ao tom da casa.

"Sou diretora, mas só me chamam pra falar quando é novembro. As decisões estratégicas acontecem o ano inteiro."

Essa limitação não é acidental: ela faz parte de um código tácito que tolera a presença negra, mas recusa o poder negro.

Máscaras em missão: os custos invisíveis da atuação negra no terceiro setor

No terceiro setor, onde a missão é muitas vezes social e a retórica da diversidade já está incorporada ao vocabulário institucional, as máscaras performáticas são mais sutis - mas não menos presentes. As lideranças negras entrevistadas descreveram a necessidade constante de se manterem "polidas", "neutras" e "estrategicamente diplomáticas" para não serem lidas como ameaçadoras ou radicais.

A máscara da empatia institucionalizada é comum: espera-se que a pessoa negra seja eloquente, acolhedora e inspiradora, mesmo quando está sob ataque simbólico ou sobrecarga de trabalho. Há também a máscara da excelência dupla - a exigência de entregar resultados impecáveis ao mesmo tempo em que sustenta a representatividade racial com equilíbrio emocional e estético.

"Todo mundo me elogia como referência, mas ninguém segura as broncas comigo. Quando o projeto falha, o erro é meu. Quando dá certo, o crédito é coletivo."

Em espaços onde o compromisso social é parte do DNA, cobra-se que a liderança negra seja prova viva da eficácia da organização. A presença negra vira vitrine, mas raramente bastidor. E o custo emocional de performar excelência sob vigilância constante ainda é pouco nomeado - e quase nunca remunerado.

Essa dimensão simbólica reforça o que já foi mapeado em nosso artigo sobre a cartografia das máscaras: a liderança negra, mesmo em espaços de missão declaradamente antirracista, continua operando sob expectativa de contenção e decoro. A liberdade de improvisar, errar ou simplesmente existir com complexidade ainda é privilégio de outros perfis.

Sinais de mudança

Apesar dos desafios, o terceiro setor também é lugar de invenção. Redes como o Coletivo Pretas em Tech, o Fórum de Lideranças Negras do GIFE e iniciativas como o Programa de Aceleração de Lideranças Negras do Baobá Fund têm criado espaços de formação, trocas e reposicionamento institucional.

Algumas organizações vêm revendo seus critérios de contratação e avaliação de desempenho, valorizando vivências e trajetórias periféricas, comunitárias e interseccionais. Há também um crescimento de iniciativas lideradas por pessoas negras desde a fundação - o que muda radicalmente a lógica da missão, da linguagem e das prioridades.

Conclusão

O terceiro setor tem potencial para ser o mais coerente com os valores que propaga - mas ainda precisa olhar para dentro com mais coragem. A presença negra precisa sair da comunicação e entrar no orçamento. Precisa deixar de ser exceção celebrada e virar regra estrutural.

E para isso, não basta abrir espaço. É preciso redistribuir poder. Porque é isso que transforma missão em coerência - e coerência em justiça.

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