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Pessoas Negras no Terceiro Setor
Entre a Missão Social e os Desafios da Representatividade
O terceiro setor, historicamente identificado com justiça social e transformação, nem sempre é coerente com os próprios valores quando se trata de representatividade racial. Embora atue nas margens e reivindique mudanças estruturais, ele também espelha - em muitos momentos - as hierarquias e silêncios da sociedade brasileira. Pessoas negras são maioria nas bases operacionais das ONGs e institutos, mas ainda minoria nos cargos de liderança, formulação e influência.
A moeda simbólica do prestígio acadêmico
Um dos achados mais relevantes da nossa pesquisa é o peso excepcionalmente alto que labels de prestígio - como ter estudado em universidades internacionais de renome - exercem sobre a trajetória de pessoas negras no terceiro setor. Ter cursado Harvard, Stanford, Columbia ou Oxford não apenas agrega reputação: muitas vezes, funciona como escudo contra o racismo institucional e chancela de legitimidade para acessar espaços que, de outro modo, seriam negados.
Programas como o Lemann Fellowship, o Fulbright e bolsas do Fundo Baobá e da Fundação Ford têm cumprido esse papel estratégico, facilitando o ingresso de lideranças negras em ecossistemas globais e redes de poder simbólico. No entanto, esse caminho ainda é acessado por poucos e pode gerar um outro tipo de tensão: a de ser visto como "exceção validada", e não como parte de uma transformação coletiva.
Desafios para quem chega lá
Aqueles que rompem o teto simbólico enfrentam outro obstáculo: a solidão institucional. Lideranças negras relatam pressão constante para representar toda uma pauta racial, mesmo quando sua posição ou função não está vinculada a esse tema. Essa sobrecarga simbólica gera exaustão e retira o direito à complexidade individual. Além disso, o ativismo racial é, muitas vezes, tolerado desde que suave, institucionalizado e alinhado ao tom da casa.
"Sou diretora, mas só me chamam pra falar quando é novembro. As decisões estratégicas acontecem o ano inteiro."
Essa limitação não é acidental: ela faz parte de um código tácito que tolera a presença negra, mas recusa o poder negro.
Máscaras em missão: os custos invisíveis da atuação negra no terceiro setor
No terceiro setor, onde a missão é muitas vezes social e a retórica da diversidade já está incorporada ao vocabulário institucional, as máscaras performáticas são mais sutis - mas não menos presentes. As lideranças negras entrevistadas descreveram a necessidade constante de se manterem "polidas", "neutras" e "estrategicamente diplomáticas" para não serem lidas como ameaçadoras ou radicais.
A máscara da empatia institucionalizada é comum: espera-se que a pessoa negra seja eloquente, acolhedora e inspiradora, mesmo quando está sob ataque simbólico ou sobrecarga de trabalho. Há também a máscara da excelência dupla - a exigência de entregar resultados impecáveis ao mesmo tempo em que sustenta a representatividade racial com equilíbrio emocional e estético.
"Todo mundo me elogia como referência, mas ninguém segura as broncas comigo. Quando o projeto falha, o erro é meu. Quando dá certo, o crédito é coletivo."
Em espaços onde o compromisso social é parte do DNA, cobra-se que a liderança negra seja prova viva da eficácia da organização. A presença negra vira vitrine, mas raramente bastidor. E o custo emocional de performar excelência sob vigilância constante ainda é pouco nomeado - e quase nunca remunerado.
Essa dimensão simbólica reforça o que já foi mapeado em nosso artigo sobre a cartografia das máscaras: a liderança negra, mesmo em espaços de missão declaradamente antirracista, continua operando sob expectativa de contenção e decoro. A liberdade de improvisar, errar ou simplesmente existir com complexidade ainda é privilégio de outros perfis.
Sinais de mudança
Apesar dos desafios, o terceiro setor também é lugar de invenção. Redes como o Coletivo Pretas em Tech, o Fórum de Lideranças Negras do GIFE e iniciativas como o Programa de Aceleração de Lideranças Negras do Baobá Fund têm criado espaços de formação, trocas e reposicionamento institucional.
Algumas organizações vêm revendo seus critérios de contratação e avaliação de desempenho, valorizando vivências e trajetórias periféricas, comunitárias e interseccionais. Há também um crescimento de iniciativas lideradas por pessoas negras desde a fundação - o que muda radicalmente a lógica da missão, da linguagem e das prioridades.
Conclusão
O terceiro setor tem potencial para ser o mais coerente com os valores que propaga - mas ainda precisa olhar para dentro com mais coragem. A presença negra precisa sair da comunicação e entrar no orçamento. Precisa deixar de ser exceção celebrada e virar regra estrutural.
E para isso, não basta abrir espaço. É preciso redistribuir poder. Porque é isso que transforma missão em coerência - e coerência em justiça.
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